1 2 3 4
                                                   A Morte dos Nagôs 

Parte III


Embora tenhamos nos detidos no livro Ewé no início deste trabalho, a proposta deste material é o de dar maior ênfase no trabalho de Juana Elbein dos Santos. Estamos falando do aclamado Os Nagô e a Morte e da estrutura criada pela autora a partir dele  que ela denominou de, "sistema Nagô". Buscando apresentar uma tradição aparentemente lógica e continuada, mesmo que inexata, o trabalho da autora conquistou prestigio, tanto no meio acadêmico quanto nas estantes de sacerdotes do culto dos Orixás no Brasil, para muitos, hoje é mais do que uma tese de doutorado com alguns registros etnográficos, é um manual de práticas litúrgicas de como, quando, e o que fazer.  Conhecimentos que a autora aponta como sendo de domínio da maioria dos adeptos do candomblé, quando na realidade muitos só o passam a ter a partir de seu trabalho.

Antes de dar continuidade a esta assertiva, devo dizer que, sou consciente que minha não formação no campo da antropologia, pode, e será usada por alguns como argumento na tentativa de descredenciar as argumentações apontadas nesta discussão, alguns sairão à procura das minhas credenciais e de meus predicados, diria até pedigree.
É a própria autora quem credencia a mim e outros tantos para tal ao afirma na pág. 14 de seu livro que:
São fundamentalmente os textos oraculares de Ifá que esclarecem a maior parte da tradição e da liturgia Nagô no Brasil.”
Pois é na qualidade de Sacerdote de Ifá, e por me considerar um estudioso e pesquisador das tradições religiosas Yorùbá, que me atrevo a escrever estas linhas. Tenho plena ciência dos problemas que vem ao meu encontro ao escrever o que segue.  Críticas serão feitas em relação a alguns dos pontos que aqui trataremos, eu apenas posso dizer: deixe alguém fazer melhor, e eu acolherei com prazer seus esforços, desde que o façam.


Colocações como as do sociólogo Reginaldo Prandi, são um bom exemplo dos conceitos forjados que apontam para o fato de que, só se é detentor de conhecimento a cerca do candomblé, aquele que é leitor e concordante com obra do acadêmico.
Foi Roger Bastide, com O candomblé da Bahia, quem deu ao candomblé o status sociológico de religião. Para quem procura simples relatos etnográficos, esses livros podem parecer desatualizados. Mas não se pode dizer que se entende de candomblé sem a leitura da obra bastidiana”.

A colocação feita pode ser tida como ambígua, este entendimento a cerca do candomblé de que fala Prandi, tratar-se-ia de fatos históricos a respeito de sua formação, ou de suas praticas litúrgicas?
Os termos, “encantamento” e “converteram-se” usados por Prandi assim como “iniciaram” citado por Beniste, não deixam margens para duvidas de que o “entender”, não é o do campo histórico, trata-se do “desde dentro”.

Um exemplo clássico e que manifesta bem este conceito é o da Argentina sorbonizada e Bastidianisada, Juana Elbein dos Santos, com seu proclamado “Os Nagô e a Morte”. Tido por muitos religiosos como “A bíblia do Candomblé” e, “Um Divisor de Águas” por acadêmicos, tem servido como pilar de sustentação para os estudiosos seguidores de seus pressupostos, que preocupados mais em credibilizar suas teses e argumentações, esquecem (de forma estratégica) de investigar as informações contidas na obra em que se apoiam.

Mesmo carente de revisão, o livro – tese de doutorado está em sua 13ª edição. O trabalho da autora ainda goza de prestigio junto aos adeptos do culto ao orixá no Brasil, assim como da academia, embora alguns acadêmicos o neguem, o que é preocupante, pois sempre que um trabalho cai nas graças da academia, leva tempo para que o produto saia da esteira da reprodução de pensamentos e estereótipos.

Esta influencia pode ser claramente vista no dicionário Aurélio, de língua portuguesa, onde Oduduwa figura como:

"Divinização iorubana da Terra e mulher de  Obatalá, o Céu".

Mãe da “antropologia iniciática”, em resposta a um artigo elaborado por Verger (abordaremos no decorrer deste trabalho) ela dizia: 

E bem é conhecida minha posição em relação ao que denominei "antro­pologia iniciática". Em Os Nagô e a Morte, eu afirmava: "Devido ao fato de que a religião nagô constitui uma experiência iniciática,... parece que a perspectiva que convencionamos chamar 'desde dentro' se impõe quase inevitavelmente”.

Iniciada no Axé Opô Afonjá (segundo ela, para o Orixá Oduduwa), Juana leva assim à comunidade acadêmica a reflexões baseadas em suas vivências nas comunidades de terreiro. Foi no intuito de conquistar o que ela denominou de conhecimento desde dentro, que pudemos notar uma verdadeira corrida aos terreiros por parte de acadêmicos, na busca de adquirir não somente uma iniciação religiosa, mas, uma maior legitimidade a suas obras por meio de sua iniciação.

Nina Rodrigues, o pai fundador deste campo de trabalho, assim como nas entrelinhas dos escritos de outros autores, já era possível notar ares do método de trabalho utilizado pelo acadêmico.

Recentemente Stefania Capone escreveu:

"Com efeito, a distancia entre observador e observado, que deveria estar na base do trabalho do antropólogo, dificilmente se mantém quando se trata dos cultos afro-brasileiros. A maioria dos antropólogos que estudaram o candomblé se engajou de uma forma ou de outra, nesse culto, contraindo espécie de aliança com seu “objeto”.
Assim, Arthur Ramos, um dos mais importantes antropólogos a ter estudado o candomblé, aceita ser iniciado como ogã, mas apenas "fara fins de pesquisa cientifica" (Ramos 1939a:70). Outra atitude é a Juana Elbein dos Santos e de Roger Bastide, que chegaram a se identificar completamente com a cultura estudada. Na introdução de As Religiões africanas no Brasil (1960), Bastide escreve "africanus sum", reivindicando desta forma seu pertencimento ao universo estudado. Mas nenhum etnólogo, tenha ele se declarado abertamente iniciado ou não, falou de sua experiência   do transe"." Stefania 2009.

A colocação feita por Stefania nos faz lembrar fato ocorrido durante um curso de "Introdução a Filosofia e teologia Da Religião De Matriz Africana e Afro Brasileira", realizado no auditório Brasílio Itibere - Secretaria de Estado do Paraná em maio de 2007. Dentre os ministrantes se encontrava o Prof. Jairo Pereira de Jesus, um dos idealizadores do curso, em conjunto com Presid. da CEBRAS, Dorival Simões.
Respeitando o conteúdo proposto pelo curso, o Prof. Jairo solicitou que os participantes levassem para caso um material selecionado por ele que tratava do "transe mediúnico" e da forma com que ele tinha sido abordado pelos pesquisadores e filósofos do meio. No dia seguinte, os grupos formados apresentavam o material formulado. No decorrer do curso onde um espaço de tempo era aberto para que todos os participantes tirassem duvidas ou fizessem comentários pertinentes ao tema, um participante, de nome Rogerio, ao microfone fez uma pergunta ao Prof. Jairo, que é iniciado (Ebomi) no candomblé:

Aluno - " Professor, O Sr. já passou pela experiência do transe? E como poderia nos explica esta experiência".

Em um tom que exprimia inquietação, assim como de maneira ríspida o Prof. respondeu.

Professor - " Esta é uma pergunta muito intima, por isto me reservo ao direito de não responder, não vou responder sua pergunta!". 

Talvez o Professor tenha se sentido desconfortável com a pergunta que o colocava ao invés de pesquisador, como objeto de pesquisa.

Esta ligação "antroiniciatica", surge na narrativa do acadêmico sempre que possível, mesmo que envolta em nova roupagem e entre linhas. Isto pode ser visto até mesmo quando o acadêmico não está a relatar algo que envolva a trama iniciática.
Autor de inúmeras obras ligadas a tradição afro-brasileira, mais precisamente a Nação Banta, Nei Lopes não recorre às divindades desta tradição para reclamar sua africaniedade, até porque, na tradição em que ele centra seu estudo, Ifá não se faz presente.

“Sou africano porque cultuo Ifá (o orixá iorubano da sabedoria e do conhecimento), que me dá certeza e força em tudo o que faço”. Entrevista concedia a ALMANAQUE BRASIL

 O Prof. Dr. David de Oliveira – Duda - ao tratar de um conflito ocorrido durante uma roda de capoeira, encontra um meio de tornar publica sua iniciação:
“Quero aprender as regras do jogo e os jeitos mil de fazer o jogo acontecer. Mas do meu jeito. Um coração bom é a chave para pisar solos sagrados. Foi o que disse o babalawô que anunciou que eu seria Omo Ifá…Omo Ifá significa ser Filho de Orumilá ou Ifá. Efetivamente, no dia 02 do mês de outubro de 2004 eu me tornei Omo Ifá, tendo sido iniciado para Orumilá e ingressado num Aô (comunidade) de Babalaôs”.
Mesmo que não sendo o objetivo deste trabalho, faz-se necessário esclarecer (o que penso ser do conhecimento do Professor Doutor) que, sendo ele um iniciado dentro do culto e tradição cubana desta divindade, a nomenclatura deveria seguir os padrões desta mesma cultura. Para Òrúnmìlà ele deveria ter grafado Orula, assim como para Omo Ifa, o correto seria Owofaka - Chamada "El mano de Orula" em Cuba, que na terminologia Yoruba seria Owo Ifá Kan:
Awófakan é uma corrupção das palavras "Owóo 'Fá kan," que significa Uma mão de Ifá." "Kófá" significa "estudar Ifá." Até o ponto em que temos concebido, nós não fazemos uma distinção entre homens e mulheres, ambos podem estudar Ifá, e receber uma mão de Ifá. . Quando eu tinha quatro ou cinco anos, eu recebi minha primeira "Mão de Ifá" (Owo Ifá Kan)”. Wande Abimbola, Awise Agbaye.
Os termos Awofakan e Owofakan são tradicionais na cultura yorùbá de Ifá, embora alguns o remetam à cultura afro-cubana:

“O termo awofakan se não me engano é de origem cubana, os nigerianos não tinham esse conceito de uma mão de Ifá. Se tem hoje é porque copiaram dos cubanos. Eu acho que significa awo Ifá kan, primeiro sacerdote de Ifá, não acho que seja uma corruptela de owo (ówó) mão, poderia até ser wo Ifa Kan e assim awofakan”. Marcos Arino Awo Fa Ogbe Ogunda 28/03/2011.

Também é valido lembrar que, fazer parte de um Aô (awo) na cultura yorùbá, pode estar relacionado a vários cultos desta tradição, entre elas Oro, Ogboni, Gelede, Egun e Ifá. Refiro-me a isto, porque nestas tradições as divergências não se limitam a variações de nomenclaturas, elas se estendem ao rito, assim como a  filosofia.

Nei Lopez a quem nos referimos anteriormente é ligado a Ifá, embora o seja assim como o professor Duda, dentro da tradição cubana deste culto. Em 2005 lançou o livro que recebeu o titulo de " Kitábu" (livro - em língua Suaile) construído em um formato que lembra, segundo o autor " propositalmente o da Bíblia e do Alcorão", dividido em "O Antigo Legado e o Novo Legado".
No capitulo 3 denominado “Ifá e a criação do mundo" ele claramente da Olofin, Olorun e Olodumare como sendo "qualidades" do Ser Supremo, afirmando serem "diferentes manifestações deste Ser ". Lopes desenrola a trama da criação de um angulo que dificilmente pode ser atribuído à tradição africana de Ifá. Isto pode ser constatado já na sua abordagem a Olodunare, da mesma forma o faz para com Orunmila e Ifá.

" Ifá define a posição na escala de valores - Como primeira atribuição, coube a Ifá organizar o inventario de toda a Criação e determinar a cada ser criado sua posição na grande escalada de valores do Universo. Nesta escala, Ifá colocou Olofin no patamar 21: Olodumare e Olorun no degrau 17[...] Por intermédio de ifá, orunmila recebeu os segredos da Criação. Por isso, ele diz que tudo deve ser perguntado a Ifá, [...] Tais respostas estão nos vários odus do oraculo de Ifá, escritos por Orunmila”.

Nei Lopes diz em seu livro que "Na terra o melhor representante de Ifá foi Orunmila que confeccionou o primeiro Opele". No decorrer deste trabalho vamos constatar que de acordo com a tradição africana de Ifá, o representante de Ifá na terra são os Ikin (caroços de dendê), assim como Orunmila e Ifá são nomes distintos para a mesma divindade,  um destes nomes remete a divindade propriamente dita, quanto a o outro, remete a seu sistema oracular.

Embora vá se entender no decorrer da leitura à que tradição de culto de Ifá o autor foi acostar suas colocações, no capitulo em que ele relata a criação, não informa ao leitor de qual vertente extraiu a informação, se da cultura tradicional ou afro-cubana, pois certamente não se trata da cultura afro-brasileira.

Na obra de Wande Abimbola pode-se notar a preocupação que o autor tem, não em descriminar, mas de tornar clara a diferença, principalmente filosófica e ritualística que ocorre com o culto de Ifá na diáspora.

Ivor: Que diferença você tem observado entre as religiões de derivação Yorùbá, como Santeira e Candomblé, e que você mesmo pratica na Nigéria?

Wande: A religião Yorùbá é super ritualizada nas Américas. As religiões em Cuba e Brasil tem se tornado muito elaboradas e complicadas, enquanto que na África é muito simples em alguns aspectos. Desde a diáspora africanos perderam o uso da língua Yorùbá, eles também perderam uma boa parte de sua literatura. Eles compensaram por isto relembrando inumeráveis tabus e rituais.
Ver mais em: Ifa Will Mend Our Broken World-.

Agindo assim os autores reivindicam, mesmo que nas entre linhas, sua pertença religiosa tradicional, seja ela afro ou africana. Em outras palavras, induzem o imaginário do leitor a viajar à terras tradicionais e não a uma afro-descendência, a uma reconstrução.

José Beniste na contracapa de seu “Orun Aye” faz menção a sua iniciação:

 “Fui iniciado em 1984 no Candomblé KETU, pela Iyalorisa Cantu de  Aira Tola do Ase Opo Afonjá”.

A questão não esta no fato de se mencionar suas iniciações, mas no fato de que não basta que o acadêmico corra ao encontro da iniciação,  tem que o fazer em terreiros cujo o valor de “pureza” lhe seja atribuído, e que faz com que o percurso  desta “corrida” obrigatoriamente passe pelas “avenidas” baianas, mais precisamente as de Salvador. Não é de estranhar o fato de que 90% os acadêmicos que estudam ou estudaram o candomblé tenham suas casas de origem situadas no ponto de chegada da “corrida”.

Isto se da, sobretudo, porque se estabeleceu que, os candomblés nagôs de origem baiana, apoiados e muitas vezes estimulados por antropólogos ligados a eles, (e aí, por mais uma vez a obra de Juana é fator determinante), detêm legitimidade e primazia religiosa, e isto tudo a partir de um duvidoso critério de pureza, que os remeteria diretamente à África. Desta forma, o que não é Nagô, e por consequência baiano, é impuro, corrompido.

Veremos mais a frente que Bastide atribuiu à os candomblés de nação Bantu a pederastia.

Um bom exemplo do que é tido por corrompido e impuro, é o termo "umbandomblé" que frequentemente é usado quando se quer contestar a legitimidade de um candomblé ou de seu sacerdote.
Hoje, assim como no passado, principalmente nos terreiros do Sul e Sudeste, a ligação entre o candomblé e a umbanda  no mesmo terreio é flagrante, seja por meio de culto ou de seus símbolos. Todavia, o pai-de-santo assim como os demais membros do terreiro, se identificam publicamente com o primeiro (candomblé), considerado mais puro, e não com o corrompido (umbanda), evitando assim, a alcunha de "umbandomblé".

Ficou subentendido que, pertencer ou ter uma ligação, mesmo que indireta com uma casa baiana de candomblé, de preferencia NAGÔ, é uma maneira de tornar-se um porta voz mais fiel da religião do africano no Brasil, mesmo com a evidencia de que muitas das liturgias neste " terreiros descendentes", fujam completamente das de sua casa matriz. Um exemplo disto é o fato de que no Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho, só mulheres podem ser iniciadas para encarnar os orixás. Os homens apenas podem ser ogãs e (ou) portadores de títulos honoríficos, o que já não ocorre na maioria dos terreiros que requerem descendência dele.


Luis Nicolau Parés em seu trabalho, A Formação do Candomblé, que trata da cultura Jeje, aborda esta supremacia cultural”:

“A perspectiva histórica é importante na medida em que permite entender ou avaliar o jogo das continuidades e mudanças. Não foi minha intenção utilizar “a História” de forma ideológica, apontando origens e defendendo continuidades diretas entre a África e o Brasil para justificar ou legitimar qualquer hierarquia cultural, como certa literatura e tradições orais tendem a sugerir em relação a outras nações”.
Fazer parte da "família-de-santo" de um terreiro "tradicional" é parte importante do "curriculum" de um babalorixá, não é a toa que Mãe Menininha tem "filhos" e "netos", que com toda a certeza, ela mesma jamais conheceu, e não pelo fato de ter falecido, e sim por nunca tê-los tido em tamanho e volume.
Todavia, hoje o Terreiro dos Gantois não seja o ponto a se alcançar, o ponto de chagada da corrida é o Opo Afonjá, a casa dos antropólogos.

Esta legitimidade chegou a ponto de que, para que o Movimento Negro de uma cidade do Sul tivesse uma mãe-de-santo ligada a ele, alguns dos membros deste movimento a época, que tinham também ligação com a politica do Estado,  institucionalizaram uma mulher (negra é claro) e a levaram até o Axé Opô Afonjá para fazer um "intensivo" , por intermédio de um membro daquela comunidade (Ogan) hoje falecido. Saldo desta trama é o fato de que a pessoa não cumpriu parte do "acordo", o que gerou forte animosidade entre os envolvidos, e que perdura até esta data.

Esta "pureza" que se atribui aos terreiros "tradicionais" adquire um volume ainda maior a partir de uma relação mais estreita como o continente africano por volta de 1950.
E neste ponto, não podemos deixar de registar o papel fundamental de Verger na construção deste cenário com seu papel de "mensageiro". Ligado por vínculos tanto no campo pessoal quanto religioso ao principal terreiro de Salvador, sua ação de elo entre os polos, favorecia os que estavam deste lado do oceano. Com as outorgas trazidas por ele, e dedicadas aos chefes dos terreiros "tradicionais". Estes títulos de reconhecimento oriundos de reis iorubas, representariam um forte e consolidador elemento na concepção de "pureza" e "tradição" africana atribuída a aqueles terreiro cuja a mãe-de-santo estava ligada, agora  não mais por uma descendência, e sim  por meio de um titulo.

Cabe aqui uma indagação. Por que motivo não se questionava a legitimidade destes títulos oferecidos por iorubas a pessoas que não tiveram contato direto com estes iorubas? Sabe-se que qualquer que seja o titulo recebido, tradicionalmente a pessoa que o recebe deve passar por cerimonias que validam e tornam públicos estes títulos.
O que é de se estranhar, é o fato de que atualmente, pessoas têm recebido títulos, não das mãos de terceiros, e sim diretamente de iorubas com autoridade reconhecida, e em cerimonia publica, entretanto, estes títulos não são respeitados e reconhecidos pela comunidade religiosa afro-brasileira.
A resposta talvez esteja no fato de que, a maioria destas pessoas que vão à África e recebem estes títulos, não mantem mais um vinculo direto com o candomblé. Como se no caso anterior, o pai ou mãe-de-santo mantivesse algum com a comunidade de onde o titulo lhe foi enviado.

Renato da Silveira de forma muito respeitosa e ética, entretanto indagatória, coloca interrogação a cerca do titulo de Asipa dedicado a Demosteles – Didi, em seu estudo a cerca do Candomblé da Barroquinha - Casa Branca.

" Infelizmente, apesar da abundância de informações provenientes da antropologia africanista, não existem referências seguras à presença de um Babá Axipa na Bahia. Ou, melhor, o que temos é uma séria de pequenas derrapagens ortográficas encontradas na literatura antropológica que tendem a confundir os dois personagens: Assica ou Axicá [...] O vocábulo axipá aparece pela primeira vez na literatura afro-brasileira como a " conhecida salva" de Marcelina Obatossi, publicada por Costa Lima em 1977: "Axipá Borogum Elexecã Congô Obatossi", e registrada em seguida em 1988, na segunda edição do livro de Mestre Didi História de um terreiro nagô ( primeira edição, 1962).
Este termo parece ter sido divulgado na Bahia após a viagem de Mestre Didi ao Reino de Ketu em 1967, quando então ele identificou-se como membro da família Axipá, da nobreza local. Na edição de 1962 de seu livro, então intitulado Axé Opô Afonjá - Notícia histórica de um terreiro de Santo da Bahia, Mestre Didi apresentou Mãe Senhora como membro de "tradicional família da nação Axé de Ketu". Na ediçção de 1988 a expressão " Axé" é suprimida, ficando Mãe Senhora como pertencente a " tradicional família da nação Ketu". Entre vários acrécimos à edição de 1988 está o capítulo " Encontro com os Axipá" onde há uma narrativa da sua entrevista com o Alaketu Adegbitê[...] Mestre Didi, após recitar o "orilé" (oriki orile) ou "brasão oral" de sua família bahiana, teria sido identificado pelo rei como membro da família Axipá, apresentada como "uma das sete principais famílias fundadoras do Reino de Ketu", de onde saía o chefe caçador.[...].
Em primeiro lugar, o caráter nobre da "família Axipá". No texto dos historiadores do Reino de Ketu não há menção alguma a tal família como sendo uma linhagem fundadora. Em todos eles as linhagens fundadoras do Reino de Ketu foram nove, das quais quatro desapareceram sem deixar rastros, restando as cinco linhagens reais que se revezam no poder, ou seja, Alapini, Magbo, Arô, Mecga e Mefu.[...].
Por outro lado, nenhum dos historiadores citados menciona o axipá como chefe caçador em Ketu [...] Além do mais, sabemos que as corporações  de caçadores eram historicamente formadas por membros de todas as linhagens e não apenas de uma, qualquer que fosse ela. [...].
Até que todas estas dúvidas sejam esclarecidas, creio que a limitada conjuntura da Bahia escravista do século XIX deve ter favorecido a transferência do título de axipá, atribuído aos chefes guerreiros-caçadores, para uma sacerdotisa do orixá do trovão, [...]. Renato da Silveira pag. 408/409/410.

Ver mais Parte IV


Por T'ogun Aroleifa.